Casa de Apoio do HES vira trabalho de pós-graduação da METROCAMP

O Doce Lar Entrada É cedo, virando a direita ao colégio do bairro Parque Jatobá de Sumaré, a placa indica […]

Autor: admin

O Doce Lar

Entrada

É cedo, virando a direita ao colégio do bairro Parque Jatobá de Sumaré, a placa indica a casa, simples, com portão de ferro, calçada de cimento. De dentro uma moça corre para vir atender, não é preciso tocar a campainha, mesmo assim, toco e logo vem ela. “Entra, entra… Dona Maria Irene está chegando”. Ao entrar pela porta da cozinha, o aviso: Seja Bem Vindo. O cartão de visita: o sorriso largo de Hilda. O coque nos cabelos, já aponta que ela gosta de trabalhar na cozinha, o café está saindo, o fogo está aceso e no fogão, uma panela de água. Fala em voz baixa, avisa que os hóspedes ainda estão dormindo.

“Aqui têm horário para acordar?”

“Não muito. Os horários são para almoço e jantar”.
Na parede da cozinha acima da mesa as 26 normas do lugar avisam sobre o rigor quanto a horários, barulho, responsabilidade das chaves e permanência. Enquanto a “dona da casa” não chega, Hilda começa a puxar papo, quer me mostrar a casa, apresenta a árvore de Natal, o presépio com o menino de Jesus e dois carneirinhos, que está montada em uma mesinha ao lado da cristaleira de madeira escura com copos azuis e xícaras brancas, na mesa de seis cadeiras, um vaso de flor e dois ursinhos de pelúcia. Na mesa de telefone, encostada na parede, o quadro de avisos, com alvarás, uma mensagem de otimismo e uma placa: Obrigada pela visita. Uma estante, ao lado da porta de entrada na mesma sala, está coberta por uma cortina, ao levantar o pano, sacos de arroz, feijão, óleo, farinha, açúcar. Passamos pela cozinha e vamos até o banheiro, claro e amplo, azulejo branco, vaso e pia em tons de cinza, muito limpo. Passamos ao dormitório com duas camas e no armário aberto roupas de cama e toalhas.

No segundo dormitório a porta está fechada, os hóspedes estão dormindo. Ao caminhar para o quintal, o cheiro de coco de gato deixa Hilda constrangida, diz que são os bichos da vizinha, “são seis gatos”. Lá uma máquina de lavar roupas e um varal modesto, com apenas um fio. No porão, uma cadeira de rodas e caixas para as doações. Hilda Sena Bezerra me apresenta a casa como seu fosse sua, e é. Ela é quem cuida, escolhe o cardápio do dia.

“Tem sempre o arroz com feijão, uma carninha e aquela mistura, hoje, vagem refogada”. O cheiro começa a envolver, e o ttsssssssssss da panela de pressão indica feijão cozinhando, ela começa a limpar a vagem, cortando em pedacinhos…

Coincidência

A “dona da casa” chega trazendo uma sacola com três vasilhas de guarda alimentos e a agenda nas mãos. Vai direto para a sala de jantar e começa a abrir as correspondências. Guarda papéis e contas na agenda, enquanto faz perguntas sobre compras para Hilda. O telefone interrompe a conversa das duas por diversas vezes, em num dos telefonemas, um convite.
“A senhora sabia que é o nosso dia?”
“Hoje? É mesmo dia do voluntário”.
“O Ismael tá dizendo”.
“Fala que é verdade”.
“Ele quer colocar a senhora no ar”
“Fala que depois ligo pra ele”

No Dia Internacional do Voluntariado, 05 de dezembro, Maria Irene é chamada para dar uma entrevista à Rádio Nova Sumaré, falar o que pequenas ações podem provocar na vida de muitas pessoas. Para ela ser voluntário não é direito, é dever. Ao falar com segurança e autonomia começa a revelar o ser humano que é. Comenta a coincidência em poder estar contando toda a sua trajetória em um dia especial.

Inspiração

Maria Irene Garcia De Nadai (foto) está com dois bótons no lado esquerdo do peito, um do Hospital Estadual Sumaré e outro acima, uma rosa do Lions, que acompanha o adorno. Detalhe que Maria Irene faz questão de tirar e mostrar. Elétrica, ela toma o café com pressa e engata na conversa, uma dicção aberta, com seqüência rápida. Os cabelos escuros e curtos, e os óculos, revelam uma pessoa que gosta das palavras. Mãe de duas filhas e duas netas, aos 58 anos, ela nem parece que enfrentou vendavais na vida, num deles parece que ganhou mais força para sua nova missão.

Diretora de escola aposentada, impressão não falhou, há nove anos ela veio com o marido de Presidente Bernardes (interior de São Paulo) para a cidade Sumaré na década de 70. Toda a história começou quando perdeu a mãe com alzheimer em 2000. Um ano depois, o pai de 92 anos foi internado com isquemia cerebral no Hospital Estadual, onde a vida lhe prepara um desafio. Em um procedimento de limpeza de escaras, ela não concordou com o tratamento e não aguentando ver a dor do pai, fez a primeira ocorrência, de próprio punho, ao serviço de Assistência Social. A crítica trouxe a amizade com as assistentes sócias, tanto que rendeu o trabalho em conjunto.
Dias longos e noites frias, era inverno e Maria Irene passou noite no

Hospital Estadual, numa delas da janela do quarto observou um homem já de idade saindo do hospital e procurando um lugar para se abrigar, ele encontrou a marquise de uma loja de construção. O noticiário de televisão avisava que seria a noite mais fria do ano e a imagem do homem não saiu da sua cabeça enquanto o marido não trouxe um cobertor e uma garrafa de café. Foi pouco. Pediu para um médico amigo autorizar a permanência do homem no hospital, que tinha vindo da cidade de Lorena (interior de São Paulo), com a filha doente e a mãe para o hospital. Por lei apenas um acompanhante poderia ficar. Enfim, a autorização acalentou o coração de Maria Irene naquela noite, mas a idéia do sofrimento não.

O homem era apenas um dos inúmeros acompanhantes que vinham de longe e não tinham onde ficar, e pior, sem dinheiro para dormir e comer. Enquanto toma um gole de café continua a contar a história de dor e atitude. O pai de Maria Irene acabou falecendo dias depois, uma semana depois, ela voltou ao hospital para a primeira reunião com dois médicos, tinha uma idéia e sede de informações, queria saber como fazer para ajudar os acompanhantes. Ao se refazer da perda, conseguia mais força e em dez dias estava formado um grupo de sete voluntários. Eles fundaram então, a Casa de Apoio Viva Feliz, Instituição Antonio Garcia. Os acompanhantes deixaram o hospital e passaram a ser chamados de hóspedes pelo grupo.

Uma Maria

Maria Irene é uma das tantas Marias espalhadas no Brasil e se encaixa na homenagem de Milton Nascimento: Maria, Maria. “…Ela é mesmo uma força que nos alerta, uma mulher que merece viver e amar, como outra qualquer do planeta….”

A diretora aposentada conta que a fé é o seu ponto forte, sendo inabalável. Das tantas provas que presencia na Casa de Apoio, já viveu as suas também, por isso se intitula um testemunho de vida. Vítima de um câncer no rim direito, recentemente encarou mais um teste, um cisto no pâncreas. Lutadora, não se deixa esmorecer, continua trabalhando em prol do hospital e dos aflitos que acompanham os pacientes. A realidade dos pacientes e dos acompanhantes hoje é outra, graças a uma idéia e principalmente, um olhar diferenciado para a realidade vivida no hospital estadual.

O tempo passa

Hoje são 100 voluntários entre dentistas, jardineiro, advogado, empresários, professores, ajudantes e assistentes sociais. O mais antigo, com mais de 80 anos é o doutor Horário Rezende Nascimento. Em quatro anos, mais de 200 pessoas foram cuidadas pela Hilda e a Regina. Café, almoço, jantar, toalha cheirosa, roupa de cama passada, muita conversa fiada e de consolo.

Tudo viabilizado num esforço diário, que contou com doações de empresas instaladas na cidade como a 3M, Honda e agora a prefeitura municipal. Com o grupo aumentando, as idéias surgiram como o bazar mensal feito dentro do hospital, roupas, artesanato e brinquedos são vendidos, uma barraca é montada no saguão do Hospital Estadual Sumaré. Já a oficina de confecção de roupas surgiu com a necessidade de atender as mãezinhas, como são chamadas as mulheres carentes que têm os filhos, mas precisam de roupas para o enxoval do bebê. As voluntárias se reúnem às quartas-feiras e fazem do dia um acontecimento na casa de apoio, almoçam com os hóspedes, contam histórias, dão conselhos e dividem o tempo, que para muitos é de longa e indefinida espera.

Filha, mãe e avó

Bom dia. Na mesa de quatro cadeiras na cozinha está uma garota de 16 anos, Luciana Moura, de cabelos amarrados, com cara de sono, é mãe de primeira viagem e se prepara para ver o filho. Ela e a avó do bebê prematuro esperam ele ganhar peso na UTI neonatal do hospital para que elas possam voltar para Tambaú (interior São Paulo). Enquanto passa a manteiga na bolacha de água e sal, a menina conta com alegria um quilo trezentos e noventa e oito gramas que está Kaíque Mateus, com um mês e nove dias, mesmo tempo que ela e mãe Maria estão na Casa de Apoio. “Parece a nossa casa, já acostumamos”.

Enquanto escovam os dentes, no segundo quarto de hóspedes, está o livro “O problema do ser, do destino e da dor”, de Leon Denis, ao lado, a caixinha de isopor, que Luciana usa diariamente para estocar o leite materno. As orientações e monitoramento são de Hilda.

A menina chama a mãe e de chinelos havaianas sobe a pé até o hospital para encontrar o filho. Momento de dar mamar, ficar com ele no peito. É o Projeto Canguru da ONU, implantado pelo HES, que preconiza a troca do calor humano entre mãe e filho, em que é cientificamente comprovada a recuperação do bebê. Dona Maria pouco fala, parece anestesiada pelas últimas surpresas, gravidez da filha adolescente, perigo com bebê, nascimento prematuro e estar numa casa que até então era estranha, mas que agora é um lugar que conseguiu encontrar sossego, como diz. Ela gosta de ficar na casa, alguns dias nem chega a ir até o hospital, prefere descansar, se cansa ao ver gente sofrendo. Na casa dá para dormir a noite toda, comer direito e ver televisão, enquanto tem que esperar a recuperação do primeiro neto.

Criatura de luta

Um rosto triste e um aspecto de canseira, o cotovelo apoiado na mesa e a mão segurando a cabeça, enquanto toma café, num copo de água, entrega as quatro toalhinhas de mão para Maria Irene. Elas estão em cima da mesa, Neide conta que ela mesma quem fez os detalhes, explica a técnica, ponto cruz. “Faço também vagonite”. Nome um pouco desconhecido, é um traçado sem ordem. Hilda interfere e conta que Maria Neide Santos é a hóspede mais antiga, vem agora de 15 em 15 dias de Marília (interior de São Paulo).

Enquanto espera o ônibus e os outros pacientes da região a serem atendidos, ela vem para casa, descansar e almoçar. O transporte é pago pela prefeitura da cidade, por isso não tem gasto. Aproveita e vem provar o almoço da Hilda. Ela tem intimidade com a casa. “Uma vez só tinha eu e Deus de hóspede aqui”. E Deus é figura lembrada a todo instante, seu amigo, companheiro e ajudante. Para ela é sagrado ler o evangelho de sexta-feira num centro espírita da sua cidade.

E foi Deus quem esteve com ela durante todo o tratamento no Hospital de Clínicas da Unicamp. A doença, um nome que ela sabe dizer, mas não explicar, piordema grangrenoso, lesão isolada, que se inicia com nódulo ou bolha hemorrágica, que evolui para úlcera necrótica, em outras palavras, uma espécie de quelóides difíceis de curar, caso de estudo. Com as saias que usa fica mais fácil o médico examinar. Até entender a doença foi difícil, teste e mais testes, um ano e três meses no HC.

Tempo que lembra mais dos amigos, principalmente do grupo hospitalhaços (ONG que visita os pacientes internados), do que dos momentos de sofrimento. A amizade ficou com as enfermeiras e o médico que cuida da doença até hoje, Dr. Luis Ricardo. “Vou mandar cartão de Natal para o pessoal de lá ainda esta semana”. Graças ao tempo que permaneceu no hospital, pode aprender a bordar. “Para ocupar meu tempo aprendi as formas de bordar”. Hoje já acha fácil bordar, passa o tempo com os moldes do ponto cruz e vende seus trabalhos com toalhas de mão por R$ 7,00, acha o trabalho pouco reconhecido, mas é um dinheirinho para o final do mês. Doméstica aposentada aos 35 anos por causa da doença, abre um discreto sorriso ao falar da sobrinha de um ano, que cuida no período da tarde. “Tenho loucura para ficar uns dias aqui, mas só de lembrar da minha sobrinha, desisto”.

Ela lembra que relutou para vir conhecer a casa, as assistentes sociais insistiam. Ela pensava que o lugar seria um albergue. Deixa claro que não tem nada contra, mas prefere não descrever como imaginava o local. Hoje é visita da casa, não mais hóspede. Vem agora para passear, mas acaba se apegando aos novos visitantes, principalmente com as mães, que estão com bebês internados. Se entristeceu quando soube da amputação da perna de um bebê que estava no hospital, conheceu a mãe da criança na Casa de Apoio. “A gente vê e ouve muita coisa triste e percebe que o nosso problema é muito pequeno. Quando a gente fica dentro do hospital é pior ainda, vi coisas que nem imaginava ver um dia”, talvez por isso goste tanto de ficar na Casa de Apoio, para ela o lugar traz conforto e boa energia.

Efeitos

As frases na parede em cima da TV, de 21 polegadas, antiga com botões, são digitadas e envoltas num plástico pregadas com fita adesiva. Neide é uma das que se encantam pelas mensagens, copiá-las e leva para os amigos.

Enquanto fala das frases, acaba desconversando e conta que se tivesse dinheiro traria uma televisão nova. Equipamento de muitas décadas, assim como a geladeira marrom, porte médio, de uma porta só. O freezer é muito pequeno e para Hilda fica difícil congelar as carnes.
As horas passam e cada um vai cuidar da vida, Maria Irene pega a bolsa, a agenda e carrega a imagem de Nossa Senhora das Graças, de quase um metro de altura. “É linda, foi a filha de um senhor que morreu e doou, vou levá-la para restaurar”.

Carregando a santa aproveita para ir pedindo no caminho uma luz, uma ajuda extra para saldar as contas, R$ 79,00 de luz, mais R$ 140,00 de telefone, fora manutenção da casa e as compras com as carnes, doação rara. Graças a Deus, o aluguel é pago por uma empresária que prefere ficar no anonimato. A Casa de Apoio passa pelo pior momento desde o início, as contas aumentaram, mas as doações, infelizmente, não. Para Maria Irene, atender a demanda é prioridade e o empenho com o trabalho se torna ainda maior, é preciso mais gás. “Gosto de ir à luta”.
São batalhas vencidas pela razão, a emoção ela deixa de lado. “Trago um saquinho, deixo na porta, quando vou embora jogo os problemas e as tristezas lá, não levo para minha casa”. E foram muitos os saquinhos nestes quatro anos, pessoas que querem morar na casa, se apegam ao lugar e pedem para ficar. Casos graves de doença, perdas e muita dor. Divide o seu tempo para ajudar dando o mínimo de conforto; um banho quente, uma comida fresquinha e uma cama para dormir. “Amparar, não é viver o problema”.

A lição do voluntariado Maria Irene faz questão de ensinar as novas voluntárias, as netas, voluntárias mirim da casa. Uma tarefa contagiante, definida como uma pista de mão dupla, quando a pessoa pensa que está doando, está recebendo mais e mais.

Despedida

Hilda começa a limpar o quintal, quem aparece é a Nina, uma cachorrinha tímida, com um pouco de dificuldade no andar, por causa de um pino colocado na pata traseira. Foi trazida pela Maria Irene. Ela fica embaixo das máquinas de costura e corre ao ver o esguicho na mão de Hilda. Neide joga mais um pouco de conversa fora, com as mãos nos bolsos da jaqueta só observa a amiga trabalhar. São como duas vizinhas falando da vida… O quintal é lavado, o portão está aberto, a rua sem movimento, nenhum carro passa, a conversa é sobre crianças… É hora de ir embora, o convite para o almoço que sairá logo é adiado, quem sabe numa quarta-feira para um almoço com voluntários e hóspedes.

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Mariana Aranha* Jornalista e assessora de imprensa das Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas (Metrocamp) e pós-graduanda em Comunicação Criativa (especialização em “Narrativas da Vida Real”), curso coordenado pelo TextoVivo em Campinas (SP), 2005.

 

Assessoria de Imprensa Caius Lucilius